terça-feira, 14 de março de 2017

Eu Amo-te!

Eu Amo-te!

Estou aqui sentada à mesa do jardim e enquanto contemplo a profusão de vida que me envolve, enquanto me deixo levitar pelo trinado das aves e inspiro os mil aromas da madrugada, penso em ti. Sim, Morte é em ti que penso e vou-te contar um segredo que descobri acerca da relação que nos une…
“Eu Amo-Te!”
Não, não temas por mim, não penses que ensandeci e que vou ter atitudes incognoscíveis mas vou-te contar o que descobri nesta carta que sei que lerás enquanto a estou a escrever.
Lembras-te quando era pequena e brincava com pessoas que mais ninguém via, aí ainda não tinha consciência de ti, para mim tudo era vida. Lembras-te quando perdi o meu Avô e foi ele que em sonhos me veio avisar de que ía mudar de lugar e me pediu para dizer à minha mãe o que estava a acontecer, ainda antes do telefone tocar, e que iria tomar conta de nós, que não nos deixaria até porque iria ajudar a nascer o primeiro neto homem e a minha mãe nem grávida estava!? Lembras-te de como me trataram quando cheguei a casa dos avós e na minha inocência dos cinco aninhos disse à minha avó para sorrir que o meu Avô estava Feliz e já não sofria? Lembras-te que me fecharam num quarto o dia todo por estar a ser alvo de qualquer ataque demoníaco enquanto as carpideiras rodeavam a minha avó e se fingiam muito sentidas? Pois bem, podia continuar a desvendar-te memórias mas para já fiquemos por aqui pois foi nesta altura que tive consciência de como te vêem, de como te tratam e de como tratam quem te vê diferente e aí fiquei magoada por mim e por ti mas comecei o caminho que me permitiu chegar até aqui e ao sentimento que nutro por ti.
Não é fácil perder ninguém, estamos apegados à presença física da pessoa e por mais que a possamos sentir de outra forma falta o aconchego de um abraço, o doce afago da voz a que nos acostumámos e que nada precisa dizer porque já a entendemos no consentido silêncio do ser. Não é fácil fazer o luto, deixar ir o que nunca nos pertenceu e foi um presente que a vida nos deu para usufruirmos enquanto pudesse ser. Não é fácil dizer a uma criança para se resignar com a dor de perder um dos progenitores, de se lembrar dos momentos bons e honrar dessa forma a cumplicidade e o amor vividos.
É duro ver alguém partir mesmo quando encaramos a morte como um renascer, como uma mudança de vibração, como um transcender, mesmo quando continuamos a sentir o amor que nos uniu e ver este ganhar novas dimensões, uma nova intensidade, livre dos constrangimentos da dualidade, da matéria.
Confesso-te, Tu és um Amor difícil mas isento de temor. Agora perguntas-me porque te amo e eu respondo-te que sem ti como é que eu poderia dar tanto valor à vida, como é que eu poderia crescer, fragilizar e fortalecer?!
São as perdas que surgem no caminho que nos fazem olhar para dentro de nós, contemplarmo-nos a sós, enfrentarmos os nossos fantasmas, desempoeirarmos o nosso sótão, abrirmos as portadas a outros horizontes, a outras moradas. E aí quantas vezes temos de lidar com a culpa por não termos dito o que sentíamos, por não termos aproveitado mais todos os instantes, por não termos perdoado esta ou aquela afronta. Essa é a verdadeira Morte, essa é que é devastadora… a culpa que nos mina por dentro, que nos corrói o amor que temos cá dentro. Essa é que é profundamente lapidadora mas quando conseguimos levantar a cabeça, voltar a contemplar um pôr-do-sol sem medo de nos encontramos connosco próprios no amanhecer seguinte, encontramos o valor que nos eleva, que nos ajuda a compreender a dor e a sorrir com a autenticidade do recém-nascido.
Como não te Amar se és Tu que me permites viver mais intensa e harmoniosamente, se és tu que me ajudas nas minhas mortes sucessivas e no meu renascer?!
Comovida, deixo-te o meu coração em forma de beijinho e reafirmo de asas abertas…
Eu Amo-te!

Ana Sou

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